Confrontos em áreas tradicionalmente violentas do Estado do Rio – como comunidades comandadas pelo tráfico – nem sempre seguem a cartilha do uso da força letal apenas no enfrentamento de uma ameaça iminente, apontou uma reportagem do “New York Times” publicada nesta segunda-feira. O texto, que usa a expressão “licença para matar” em seu título, ressalta o número recorde de mortes cometidas pela polícia fluminense ano passado: 1.814. Segundo a publicação, “um crescimento repentino, na casa das centenas, em um estado de longa história de brutalidade policial e onde lideranças políticas prometeram cavar ‘covas’ contra o crime”. O jornal americano analisou 48 mortes de uma região na Zona Norte da capital, em que o uso excessivo da força não impediu que os agentes voltassem depois para as ruas.
No levantamento feito pela reportagem, em ao menos metade dos mortos foi atingida nas costas, segundo autópsias. Desses casos, em 20 os mortos foram baleados ao menos três vezes. Esse tipo de ferimento confronta a orientação do uso de força letal apenas em situações de ameaça iminente. Já o número de policiais feridos durante os confrontos se resumiu a dois: um atingido por disparo acidental de seu próprio fuzil e outro caiu ao tropeçar.
Entre os homicídios por policiais analisados pelo Times, um quarto envolve um agente que já respondeu por denúncia da mesma natureza, e metade é acusada de ao menos um crime. Em oito destes casos apurados, parentes disseram que as mortes ocorreram durante emboscadas armadas pela polícia para matar traficantes. Também foram ouvidos relatos de torturas feitas por agentes.
As 13 mortes ocorridas na sexta-feira em uma operação no Complexo do Alemão, durante a quarentena do novo coronavírus, com negócios fechados e a população reclusa.
A reportagem informa que discursos de “guerra contra criminosos” ditos por governantes, como o presidente Jair Bolsonaro e o governador do Rio, Wilson Witzel, endossariam o comportamento da polícia. Entre um dos casos destacados pela reportagem, está o do sargento Sérgio Britto, de 38 anos, em trabalho nas ruas mesmo enquanto aguarda julgamento por homicídio. Ele entrou na Polícia Militar em 2002, e desde 2010 participou de pelo menos 20 mortes em serviço. Em 2007, Britto quase foi afastado das ruas após a determinação de um juiz, mas seus advogados recorreram e alegaram que ele é um bom policial e agiu em legitima defesa. Ele disparou atrás da orelha direita de um suspeito de tráfico de 20 anos de idade.
O sargento apoiou o atual presidente durante as eleições, em outubro de 2018, ao se juntar ao grupo em frente ao condomínio de Bolsonaro, na Barra da Tijuca, na noite da votação e publicar, no mesmo dia, em seu perfil do Facebook a mensagem “Chegou uma nova era, a era da opressão” com o emoji da mão em gesto de arminha, movimento popularizado. Britto não atendeu ao pedidos de entrevistas feitos pelo “New York Times”.
A PM tem um quarto a menos de agentes previstos na corporação: um déficit de 15 mil no contingente que deveria somar 60 mil. No 41º BPM (Irajá) – conhecido como “batalhão da morte” – mais de 20% dos 612 agentes (menos da metade do número necessário) estão de licença ou afastados por problemas físicos e psiquiátricos. É um dos mais violentos desde sua criação, em 2010, para reforçar a segurança de meio milhão de pessoas. Em seu território,há cerca de 50 favelas. Segundo declarou o tenente-coronel Vinícius Carvalho, que esteve no comando do batalhão, afastar policiais envolvidos em um homicídio é “utópico” em áreas de confrontos regulares.
De 2015 a 2018, a taxa de homicídios no 41º BPM teve queda de cerca de 30% com o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública, que fez uma força tarefa para investigar este tipo de caso. Os número voltaram a crescer no ano passado no estado, uma alta de 20%. Na área do batalhão, a elevação foi maior, de 22%. Entre os homicídios ocorridos na área do batalhão em 2019 está a morte de Rodrigo dos Santos, de 16 anos. Em uma motocicleta e com umamigo na garupa, o adolescente descia uma favela carregando uma mochila com maconha, cocaína e pedras de crack. Foram 38 disparos na direção da dupla, que resultaram na morte de Rodrigo a caminho do hospital após ser atingido uma vez no braço e três nas costas.
Para o promotor especializado em violência policial Paulo Roberto Cunha, o dado é preocupante:
“No mínimo, uma determinada força policial está priorizando uma forma de atuação que aumenta o risco de confrontos e com isso, o número de mortos”, afirmou ao jornal.
A falta de perícia nos locais das mortes é um dos fatores que prejudicam as investigações. Entre as dificuldades, está a falta de orçamento para a compra de materiais essenciais, como luminol, a solução química usada para identificar vestígios de sangue, segundo afirmou ao NYT Andréa Amim, promotora que lidera a força-tarefa que investiga homicídios cometidos por policiais.
No caso da morte de Rodrigo, a versão de três testemunhas diverge dos depoimentos dos agentes Britto e Ataliba, que afirmaram que o rapaz foi atingido durante um confronto da polícia com traficantes de drogas. Pessoas que estavam no local contaram não haver criminosos armados naquele momento.
A irmã de Rodrigo, Yasmin dos Santos, na época com 18 anos, chegou ao local minutos depois. O rapaz estava sangrando dentro de um veículo policial blindado. Ela lembra do questionamento feito por um policial:
“Vai dizer que ele não era bandido, que você não sabia?”.
Ao comentar o motivo de não ter aberto uma investigação, ela afirma:
“Eu estava com muito medo”.
Em nota ao NYT, a Polícia Militar informou que os agentes do 41º BPM assumiram riscos consideráveis para apreender mais de 1.800 armas nos últimos cinco anos de “marginais sanguinários”. E acrescentou que todos os tiroteios com vítimas fatais envolvendo a polícia são investigados minuciosamente.
O governo do Estado e a Polícia Militar não comentaram a reportagem do “New York Times” e não retornaram aos questionamentos do EXTRA. Mais Noticias em… https://extra.globo.com/noticias/rio/nyt-policiais-militares-tem-licenca-para-matar-no-estado-do-rio-24432898.html