Especialistas apontam cláusulas abusivas em contrato da AstraZeneca com Fiocruz que podem prejudicar calendário de vacinação

RIO — Em setembro de 2020, a Fiocruz assinou o contrato de encomenda tecnológica com a farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca para a produção da vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford. Passados seis meses, no entanto, muitos aspectos do acordo seguem sigilosos. Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO que tiveram acesso a parte ou à íntegra do documento, ele contém “cláusulas abusivas” — que podem, inclusive, colaborar para o atraso na vacinação no país.

O documento assinado prevê prazos muito largos, oferecendo margem para alterações pautadas pela política — diz o professor de Saúde Pública da USP Fernando Aith, diretor do Cepedisa/USP, centro pioneiro de pesquisa sobre o direito da saúde no Brasil. — Por exemplo: há uma entrega de vacinas prevista no contrato para julho, mas fazem um acordo de cavalheiros, na palavra, que ela será feita antes, em janeiro. Na hora do vamos ver, o que vale, no entanto, é o contrato. Fica nebuloso. Se estivesse mais claro no contrato, o Plano Nacional de Imunização (PNI) poderia ter bases mais concretas.

O país já vive as consequências do atraso no calendário da vacinação no pior momento da pandemia. A própria Fiocruz informou na semana passada que entregará em março 3,8 milhões de doses produzidas na instituição a partir de insumos vindos do exterior. Mas seu calendário inicial prometia a entrega de 15 milhões de doses neste mês. O atraso ocorreu por uma falha em uma máquina que tampa os frascos da vacina.

Professor do Centro de Direito da Universidade de Georgetown (EUA), Matthew Kavanagh é um duro crítico dos acordos de exclusividade, que têm sido praxe entre empresas que criam as vacinas de Covid-19 e instituições que vão produzi-las. É o caso tanto do trato entre AstraZeneca e Fiocruz (que só pode produzir o imunizante de Oxford) como o da chinesa Sinovac com o Butantan (que só vai produzir a CoronaVac).

Licenças exclusivas são antiéticas para a boa saúde pública — afirma Kavanagh, também diretor do Instituto O’Neill de Direito Sanitário Nacional e Global. — E são responsáveis diretas para que hoje exista um fornecimento de vacina artificialmente limitado, que empaca planos de vacinação.

Após fazer uma requisição através da Comissão Externa de Enfrentamento à Covid-19 da Câmara dos Deputados, o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT-SP) teve acesso à íntegra do contrato.

Ele tem cláusulas abusivas. Faltou apoio do governo federal para negociar, em defesa da Fiocruz, acordo mais amplo. Não é à toa que a embaixada do Reino Unido acompanhou tudo de perto. O embaixador foi a reuniões no Congresso, pois essas negociações são estratégicas — afirma.

Exclusividade

O ex-ministro elencou os três pontos que considera mais críticos no documento, e o primeiro deles é justamente a exigência de exclusividade. Outro é a cláusula que proíbe a Fiocruz de comercializar e exportar a vacina, inclusive para fundos internacionais, como a Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde:

Fiocruz e AstraZeneca argumentam que a transferência de tecnologia é “aberta”, mas isso não está escrito no contrato. Ora, se fosse aberta, a Fiocruz poderia exportar e comercializar dentro do país — diz o ex-ministro. — Precisamos suprir o mercado nacional, mas e depois? O mundo seguirá precisando de vacinas. Poderíamos expandir a produção, posicionar a Fundação em outros países, ampliar a tecnologia. Faltou visão estratégica.

Padilha aponta também a ausência de clareza sobre o preço do imunizante:

Um acordo de transferência de tecnologia dura anos, qual o preço por dose ao longo desse período? A empresa oferta um preço inicial pois vivemos hoje a pandemia, mas quer rever depois. A sociedade deveria ter acesso aos valores.

Aith concorda. E diz que, na parte do contrato tornada pública, não há especificação de preço, apenas que o índice de correção a ser usado é o IGP-M, quando “geralmente se usa IPCA ou a taxa Selic”.

O sigilo que envolve os anexos dos contratos das farmacêuticas com parceiros públicos também dão dor de cabeça aos especialistas. Aith argumenta que contratos do gênero deveriam ser abertos e transparentes, justamente por envolver dinheiro público:

AstraZeneca e Fiocruz alegam que são cláusulas que envolvem sigilo industrial. Mas a Fiocruz, assim como o Butantan, são institutos públicos, as transações envolvem dinheiro público, deveriam ter contratos transparentes.

A responsabilidade sobre efeitos adversos, ponto controverso na negociação com a Pfizer, também está presente no contrato com a AstraZeneca, confirma Padilha. Os especialistas ouvidos pelo GLOBO não consideram este, no entanto, aspecto tão crítico.

Essa exigência está sendo imposta a vários países. No Brasil, isso se justifica ainda mais porque o próprio presidente Jair Bolsonaro levanta suspeitas infundadas sobre riscos, gerando insegurança na indústria — afirma Aith.

Kavanagh lembra que também se questionou o contrato firmado pela União Europeia com a AstraZeneca. Atrasou-se a entrega das quantidades prometidas de vacinas e não se cumpriu o cronograma inicial. E a falta de transparência contratual foi igualmente destacada, já que apenas parte do contrato foi tornada pública:

Aquisições com dinheiro público devem ser feitas por meio de contratos públicos, para evitar corrupção e ver como nossos impostos são gastos e evitar a corrupção. A transparência é o alicerce da boa governança e não devemos ser solicitados a trocá-la pelo acesso às vacinas — diz.

Em nota, a AstraZeneca informou que vem trabalhando com diversos países e entidades para tornar a vacina acessível, de maneira justa e igualitária, sem lucro durante a pandemia. E que o contrato firmado “segue a Lei da Transparência no Brasil”, com cláusulas sigilosas referentes à propriedade industrial e a “demais assuntos da negociação, classificados de acordo com a Lei 12.527/2011 e seu Decreto 7.724/12”, que relaciona informações sob restrição de acesso, observados grau e prazo de sigilo.

A Fiocruz argumentou que “nenhum produtor no mundo está produzindo hoje duas vacinas diferentes contra a Covid-19” pois o processo é “extremamente complexo”. E que as entregas de insumos para a produção de 100,4 milhões de doses até julho “tiveram seus pagamentos antecipados”.

A Fiocruz também afirma que o objeto do contrato de encomenda tecnológica está limitado a 100 milhões de doses (que serão produzidas nacionalmente e entregues no segundo semestre), “totalmente destinadas ao Ministério da Saúde e ao SUS”. E que, caso haja produção excedente, “será possível avaliar a destinação para outros territórios”.

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