Na última segunda-feira, o Festival de Cinema de Cannes anunciou uma premiação especial não a atores ou atrizes, mas sim a um cão, um Jack Russell terrier chamado Patron, não por seus méritos na tela, mas sim pelo seu papel na guerra da Ucrânia, que completa cem dias nesta sexta-feira: ele é um dos muitos animais que ajudam a encontrar minas explosivas, um trabalho que também lhe rendeu uma medalha concedida pelo presidente Volodymyr Zelensky.
À sua forma, o reconhecimento a Patron deu evidência a um dos mais perigosos legados que o conflito deixará à Ucrânia: as grandes áreas repletas de minas terrestres e outros tipos de explosivos não detonados, como as bombas de fragmentação, e que podem levar anos, ou décadas, para serem desarmados.
Segundo estimativas de Kiev, 300 mil km² do território ucraniano precisarão ser “limpos”, ou seja, passar por uma lenta e minuciosa análise para encontrar e desativar minas explosivas, bombas de fragmentação e demais armamentos não detonados.
“Cerca de 10% a 30% de todas as armas explosivas usadas, lançadas ou atiradas não explodem como deveriam, e outros equipamentos do tipo são abandonados em diversos locais”, afirmou, em relatório recente, o Grupo de Aconselhamento para Educação sobre o Risco de Itens Explosivos, formado por uma dezena de agências da ONU, centros de estudo e ONGs internacionais.
Pelas contas do Ministério do Interior, para cada dia de combate, são necessários 30 dias de operação de limpeza — por isso, podem ser necessárias algumas décadas para que o trabalho seja concluído, segundo o Centro Internacional de Genebra para a Desminagem Humanitária (Gichd, sigla em inglês).
Como a guerra ainda está em curso, e não há uma ideia sobre o nível de contaminação do solo por explosivos, será difícil definir qual o tipo de trabalho que será feito e quanto tempo vai levar até que essas áreas estejam liberadas — afirmou ao GLOBO Valon Kumnova, chefe de programas de ações relacionadas a minas do Gichd. — Para efeito de comparação, após a guerra na Geórgia, que durou alguns dias, em 2008, foram necessários algo entre 18 meses e dois anos para a limpeza. E em uma área muito menor.
Apesar dos combates, o trabalho para destruir as minas e demais explosivos já está em andamento: segundo o Ministério do Interior, até o começo da maio 90.432 munições foram “neutralizadas”, somando 583 kg de explosivos, que incluem 1.964 bombas lançadas por ar. Isso corresponde a uma área de 163 km² considerada segura para a população civil.
Mesmo antes de as tropas de Vladimir Putin cruzarem as fronteiras, em fevereiro, as minas explosivas já eram um grave problema: em comunicado divulgado em abril de 2021, Osnat Lubrani, coordenadora humanitária da ONU no país, afirmou que os explosivos não detonados colocavam em risco cerca de dois milhões de pessoas no Leste ucraniano, uma área que vive um conflito entre as forças de Kiev e separatistas pró-Moscou desde 2014.
De forma geral, a situação ficará bem pior do que já era antes do início do conflito, uma vez que o nível de contaminação do solo com aparatos explosivos vai depender da duração da guerra e de que tipo de armas serão usadas. Mas posso garantir que essa contaminação será muito maior do que já era — disse Kumnova.
Segundo o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, 1.190 civis morreram ou ficaram feridos em incidentes ligados a explosivos não detonados entre 2014 e 2021 — entre as vítimas, estavam dezenas de crianças, consideradas particularmente vulneráveis.
É inaceitável que locais onde as crianças podiam brincar há pouco menos de quatro anos agora estão forrados de explosivos mortais — afirmou, em 2019, Giovanna Barberis, então representante do Unicef na Ucrânia. — Todas as partes no conflito precisam imediatamente colocar fim ao uso dessas armas horrendas que contaminaram as comunidades e colocam as crianças em risco permanente.
Hoje, estima-se que dois milhões de pessoas vivam em áreas de risco, em sua maioria no Leste ucraniano.
As minas terrestres e outros armamentos explosivos serão uma ameaça ao bem-estar físico e socioeconômico dos civis por muitos anos — disse, em abril, a representante da ONU para a Ucrânia, Osnat Lubrani. — Neste período, os moradores do Leste da Ucrânia não têm outra escolha a não ser viver, cultivar sua terra e mandar suas crianças para a escola em áreas cheias de minas.
O uso de minas explosivas foi banido em 1997, através do Tratado de Ottawa, que vetava sua produção e ordenava a destruição de todos os arsenais existentes. Hoje, 164 países integram o Tratado, incluindo a Ucrânia, mas a ausência de alguns deles nessa lista dificulta sua implementação: EUA, Rússia e China, três dos maiores produtores de armas do mundo.
Na semana passada, o Departamento de Estado dos EUA revelou que, de 2004 e 2021, forneceu mais de US$ 77,3 milhões em assistência direta para a Ucrânia, destinada a operações de desminagem e destruição de outras armas convencionais. Segundo Karen Chandler, subsecretária de Estado para programas e operações, o pacote de quase US$ 40 bilhões de ajuda para Kiev, aprovado mês passado, destina US$ 100 milhões para reduzir a “contaminação por minas e explosivos não detonados”.
Esses US$ 100 milhões são um primeiro passo muito significativo para enfrentar esse problema urgente — afirmou Chandler, durante debate em Washington.
Além do dinheiro vindo de grandes potências, a ajuda também vem de países que têm seus próprios problemas com minas explosivas.
Recentemente, o Ministério da Defesa colombiano anunciou que enviaria 11 de seus especialistas para um país não especificado da Otan, a principal aliança militar do Ocidente, onde darão treinamento aos ucranianos. O Kosovo, cenário de um violento conflito no final do século XX, também está compartilhando o conhecimento adquirido durante a guerra com a Sérvia. Até hoje, os dois países convivem com a ameaça dos explosivos não detonados.
Além do lado humano, o uso amplo desse tipo de armamento é um risco, segundo analistas, para a segurança internacional e para conflitos futuros — ainda mais se os responsáveis pelo seu uso não forem responsabilizados.
Segundo especialistas, a Rússia e seus aliados em Donetsk e Luhansk estão instalando minas de forma discriminada para barrar ofensivas ucranianas — por vezes, eles são instalados em estradas, plantações e áreas urbanas, colocando a população em risco.
A Ucrânia, por sua vez, usa minas antitanque, que não são banidas legalmente, mas também precisarão ser desativadas para não colocar em risco a população civil. Ambos negam qualquer violação às leis internacionais.